Capeia Arraiana Forcalhos

Data: 19-AGO-2024

 

TOURADA EM FORCALHOS *

A região de Riba-Côa, que corresponde aproximadamente ao concelho do Sabugal, faz

fronteira com a faixa ocidental da província espanhola de Salamanca, e prolonga, em

Portugal, essa parte da Meseta castelhana.

O contraste é marcado entre a paisagem portuguesa, dividida em pequenos campos,

caminhos murados e montados pobres, e a espanhola, com as terras abertas em amplas

ondulações a perder de vista e as vastas devezas onde se cria gado taurino em grande

escala.

Nas aldeias dessa zona, as respectivas festas patronais compreendem em geral, além das

cerimónias religiosas próprias, uma tourada de género especial, que constitui o seu

grande atractivo; a vê-la ou a nela participarem, acorrem não só as gentes locais e das

povoações da região, de um lado e do outro da fronteira, mas também as pessoas da

terra que trabalham fora, mesmo em países estrangeiros, que escolhem essa ocasião para

as suas férias, e forasteiros, aficionados, etc.

Para tal acontecimento, essas aldeias possuem um amplo largo, que no dia da tourada é

fechado com bancadas de tabuado e, nas entradas das ruas, carros de tracção animal

carregados com troncos de árvores e dispostos a seguir uns aos outros, fazendo de

barreira e de local para espectadores; em frente às casas, armam-se refúgios com toros

postos ao alto, entre os quais pode passar um homem mas não o touro; e, num extremo,

improvisa-se um curro, para os touros que serão corridos.

Com grande antecedência, a mocidade prepara o forcão, que constitui a verdadeira

originalidade destas touradas: um enorme triângulo feito de três longas pernadas de

carvalho, os lados medindo cerca de 5 m, e um longo pau atravessado na base, com

cerca de 7,5 m, que ficam com as pontas e as extremidades salientes — as galhas —;

um outro pau, perpendicular à base, a meio desta, e com cerca de 6 m, tem a ponta, no

vértice formado pelos lados do triângulo, também saliente — o rabicho —, servindo de

leme a um homem que, nessa ponta, o empunha — o rabicheiro — para conduzir a

actuação do forcão.

Por costume antigo, os touros vêm de Espanha, das aldeias vizinhas, cedidos

gratuitamente em contrapartida da renúncia, por parte dos lavradores portugueses

proprietários de terras na raia, a quaisquer reclamações contra os estragos que os gados

espanhóis ali fazem nas suas searas.

Em Forcalhos a festa é dedicada ao Santíssimo Sacramento e tem lugar no terceiro

domingo de Agosto; mas o seu início é, conforme o uso geral, anunciado já na véspera

ao pôr do Sol, com foguetes e o rufar do tamborileiro. No domingo, o dia começa com a

alvorada, dada pelo tamborileiro, que, mais tarde, abre o cortejo dos moços, armados

com espingardas e alabardas ornamentadas, que correm as ruas em duas filas,

encabeçadas pelos dois mordomos do ano, um com a bandeira do Menino, e outro com

uma espada desembainhada. Seguidamente, tem lugar a missa, a que a mocidade assiste

disposta igualmente em duas filas, e finalmente a procissão, com a imagem do

Santíssimo e os andores levados pelos mordomos, entre cânticos, música e foguetes. E,

a findar o dia, dança-se no largo da povoação, com música do tamborileiro e de um

acordeonista.

A segunda-feira é consagrada à tourada. Ao romper do Sol, o tamborileiro dá a

alvorada, sublinhada pelo estrelejar dos foguetes. E logo começam a comparecer as

pessoas: os homens mais velhos ultimam o arranjo do redondel, arrumando


devidamente os carros e vedando as saídas, enquanto os moços se preparam para ir

buscar o gado a um ponto da fronteira (combinado previamente com o montaraz da

deveza da Genestosa, em Espanha, que é o local onde ele pasta).

Outrora procediam deste modo para escapar à vigilância dos guardas de ambos os

países; hoje, esta operação faz-se na presença dessas autoridades. Só a cavalo se pode

participar nesta operação, por causa dos perigos que ela apresenta, exigindo grande

mobilidade. Chegados à fronteira, os moços portugueses encontram-se com os

vaqueiros espanhóis, que trazem já consigo o gado que foi apartado, de acordo com as

indicações dos organizadores da festa. Põem-se então em marcha: à frente, conduzindo

os animais, o montaraz e os outros vaqueiros espanhóis; a seguir os animais, precedidos

por uma vaca mansa — o cabresto — que leva um enorme chocalho, e que ajuda a

manter os touros em ordem; e aos lados e atrás, a fechar a cavalgada, os portugueses.

Entretanto, o caminho que os cavaleiros e o gado deverão tomar para regressar à aldeia

foi-se enchendo de gente, que trepa para os muros ou outros pontos elevados, para sem

risco verem a cavalgada passar. Ao fim de algum tempo, começam a vir emissários que

informam do número e qualidade dos touros, e do tempo que devem ainda demorar. Já

perto, o montaraz parte à desfilada, seguido pelos animais e, atrás, pelos demais

cavaleiros a galope, para que aqueles, assim arrastados, não fujam ou se tresmalhem.

Enfim, uma nuvem de poeira, ao longe, anuncia que a cavalgada já vem perto; e, enfim,

ei-la à vista: os touros, atrás do cabresto, na ordem que indicamos, entram, em violento

tropel, na aldeia, e são encaminhados para a praça e fechados no curro. É o encerro, um

dos grandes momentos do dia. O repicar dos sinos e um foguete anunciam que o gado já

está encurralado e que as pessoas podem circular de novo livremente (1).

Da parte da tarde tem lugar a corrida propriamente dita. Logo após a refeição do meio-

dia, as pessoas começam a afluir à praça e as bancadas, janelas e varandas, telhados e

carros, vão-se enchendo. Todos, de cima do curro, querem ver e acirrar os touros

encerrados; e os que já os viram, descem para dar lugar aos outros. Encostado à parede

de uma casa, o rabicho ao alto, está o forcão. O tamborileiro rufa.

Perto da hora, chegam as pessoas da família mais importante da aldeia, com os seus

convidados, e tomam lugar num palanque, a meio da bancada central.

A mocidade participante, então, na praça, com canas de milho nas mãos, forma em duas

filas, a pé, atrás dos dois mordomos empunhando a bandeira, a cavalo, de fato novo e

luvas brancas, e com as montadas engalanadas. O cortejo, precedido pelo tamborileiro,

abeira-se da bancada, e um dos mordomos, num curto discurso cerimonioso, solicita ao

«dono da praça» licença para se realizar a capeia; esta pessoa responde, e o cortejo dá

então duas voltas à praça, e os mordomos, sozinhos, mais uma terceira. Enfim, soa mais

uma vez o tamboril, a gente que está na praça debanda, procurando locais protegidos,

atrás das barreiras ou debaixo dos carros — os burladeros —; ficam na arena apenas os

mais animosos: os capinhas espanhóis, e a mocidade, no centro do redondel,

sustentando o forcão, de frente voltada para o curro.

Da porta deste anunciam então a saída do touro; e logo ela se abre, e o animal irrompe e

arremete contra o forcão, marrando nas galhas, e perseguindo em seguida, desorientado,

pela arena, os que o provocam com correrias, passando-lhe à frente, ao lado, ou por trás,

gritando, dando-lhe pauladas, aguilhoando-o. O animal investe, os perseguidos fogem,

saltando para os carros, refugiando-se nas barreiras.


Umas vezes por outras os capinhas espanhóis entram em acção, e fazem os seus passes

com mais ou menos perícia, merecendo não raro aplausos da assistência.

Chega então a vez de o forcão entrar em acção. Guiado pelo rabicheiro, que o ergue

pelo rabicho, e conduzido pela gente nova que o leva seguro pelas duas pernadas

laterais, procura-se, rodando com ele, levantando-o ou abaixando-o, conforme as

investidas do touro, mantê-lo com o pau frontal sempre voltado para este, que marra

furiosamente contra as galhas, e assim impedi-lo de atingir as pessoas.

Por vezes o animal consegue meter a cabeça por baixo das galhas e levantar esse lado; e

então passa para trás do forcão e obriga os moços a largá-lo e fugir para os carros e

abrigos.

Se a gente nova não maneja devidamente ou não aguenta o forcão, a assistência pede

que intervenham os casados, os quais acedem sempre de bom grado.

Nestas diversas actuações, abundam os lances humorísticos e burlescos, nem sempre

planeados. Com frequência, as pessoas são colhidas, e então todos saltam para cima do

touro, imobilizando-o como numa pega. Quando aparecem animais particularmente

bravos, estes lances são verdadeiramente perigosos, e a história local refere dramáticas

capeias em que aconteceram ferimentos graves e até mortes.

Nesses casos, e de um modo geral quando a gente de Forcalhos não foi capaz de

dominar o touro, os moços das aldeias próximas da mesma área (que também têm esta

tradição de touradas com o forcão), pedem para que os deixem correr esse touro no dia

da sua festa, numa manifestação de emulação sociocêntrica, habitual entre grupos

vizinhos.

Enfim, o touro está corrido; ouve-se o respectivo toque, a porta do curro abre-se, sai o

cabresto que vai ao seu encontro, e o touro, atrás deste, recolhe, para dar lugar, passados

uns breves minutos, ao que se lhe segue. Correm-se deste modo todos os animais

escolhidos para a tarde, geralmente em número de seis ou mais, com um intervalo a

meio para descanso e arranjo da arena, e que as pessoas aproveitam para beberem um

refresco, e os capinhas espanhóis para efectuarem um peditório pela assistência.

Finalmente, corrido o último touro, e depois da praça ficar vazia, os touros, de novo

conduzidos pelo montaraz, voltam para Espanha.

* Este texto, em versão alemã (trad. de Jeanne Adler), acompanha o filme realizado pelo

Instituto do Filme Científico, de Gõttingen, em colaboração com o Centro de Estudos de

Etnologia, de Lisboa, N.° E 1869, intitulado Stierkampf in Forcalhos, e publicado em

Instituí fur den Wissenschafilichen Film, Sektion Ethnologie, Série 12, n.° 29,

Gõttingen, 1982.

(1) No encerro a que assistimos, em 1970, esse foguete foi lançado antes da entrada da

praça se fechar, e um touro, especialmente bravo, conseguiu escapar-se e tomar, em

furiosa corrida, o caminho da fronteira, para voltar ao seu território; não encontrou

nenhuma pessoa, mas arremeteu contra uma vaca que regressava à aldeia, e esventrou-a

mortalmente.

Lisboa, Março de 1982

Ernesto Veiga de Oliveira, “Tourada em Forcalhos”, in Festividades Cíclicas em

Portugal, Lisboa: Publicações D. Quixote, pp. 263-268, 1984

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